quarta-feira, agosto 23, 2006

A Sangue Quente


"Você levou meu sossego
Você roubou minha paz
Por você eu vivo a sofrer
Sem você vou sofrer muito mais

Já não é amor
Já não é paixão
O que eu sinto por você
É obssessão"

- Mirabeau


Uma longa e tortuosa jornada pode acabar na... boca do urso, lá no alto da cachoeira. Mas que jornada é essa, de anos e anos vivendo muito bem comigo mesmo, aliviado por encontrar pela manhã o lado esquerdo da minha cama vazio, não ter a quem dar satisfações, curtindo a boa e velha galinhagem? Por algum acaso eu pretendia chegar ao topo da cachoeira?

Tenho na ponta da língua o argumento que usei com meu primo, quando da nossa última viagem no estilo “sideways”: estou cansado dessa vida bandida! Na verdade foi um argumento em conjunto. Nós éramos meio que os personagens do Sideways, por mais decadente que isso seja. Viajar com o propósito de “pegação”, junto com um amigo, que fala a sua língua, que não tem frescuras, que bebe o tanto quanto você bebe, é... bom demais.

Mas cansa. E nós chegamos a essa conclusão. Tristes, mas chegamos. Brindamos a nossa última viagem ao mundo do “venha o que vier”.

Cansa porque estou com 31 anos, meu primo com 28, e isso deveria cansar em tais idades. E cansa ver todos os seus amigos se preocupando com uma única pessoa, e tendo também uma única pessoa a se preocupar com eles, enquanto você só se dedica a um só indivíduo: você próprio.

E o tempo passou. Eu conheci Madrid, conheci Praga, conheci Lisboa. Da última vez que tinha ido à Europa, em 1999, voltei me encontrando nos olhos de certas moças, que na verdade apenas me refletiam, nada mais. Agora, está acontecendo novamente. Estou me perdendo, entregando meu espírito para o comando alheio. E pensar que nada, absolutamente nada disso precisaria estar acontecendo.

Bastava você não ter cruzado o meu caminho, para que eu não fosse obrigado a ficar horas contemplando uma figura, sem fazer idéia do que ela escondia. Ou podia ao menos ter mantido o esconderijo, nunca ter me deixado conhecer o prazer doloroso de te amar.

Pior, você deixou, e permitiu ainda mais! Permitiu que eu escutasse a sua voz. Fazendo isso, sem saber, condenou meus ouvidos a acharem todo e qualquer som a minha volta um incômodo infernal. Todos os sons, com exceção de um, grave e suave ao mesmo tempo, perfeito.

Não satisfeita, talvez dando asas a um instinto cruel das mulheres que nascem perto do final do inverno, das mulheres de agosto, você me concedeu instantes ao seu lado, em silêncio. Deixou-me sentir a sua presença sem sequer lhe tocar. E que silêncio rico! Pois com ele eu pude cantar dentro da minha mente tudo aquilo que não se pode falar.

Talvez, a essa altura, eu ainda pudesse ser salvo. Mas isso não estava nos planos, nem nos seus, nem nos meus. Lá estava eu pronunciando palavras e ouvindo os seus verbos. Porque você fez isso comigo? Por que não fingiu ser burra, estúpida, antipática, ou apenas ordinária, como a maioria das pessoas? Por que se revelar encantadora, dona de um argumento que vive na fronteira do racional e do subjetivo, sem exageros, sem pedantismo, sem clichês, sem fórmulas? Sem a hipocrisia dos que dizem “eu não tenho preconceitos”. Sem a perfídia dos que dizem isso ou aquilo de acordo com a situação. Por quê?

A esse êxtase de admiração, experimentei um tempo longe dos teus sinais. Ah, maldita ansiedade! O seu ato de caridade, ao me poupar de mais detalhes seus, que já começavam a atrapalhar o meu bom senso, não funcionou de primeira. Como se trabalha numa situação dessas? Como se levanta todas as manhãs? Como se diz “bom dia” ao porteiro e aos colegas de trabalho? Como se pensa em alguma coisa diferente do seu nome? Como evitar remeter toda e qualquer pessoa, música, frase, som, propaganda, programa de TV, jingle político, qualquer coisa, a uma única idéia: você? Como sonhar com outra coisa (assumindo-se que seja possível dormir)?

Mas o tempo fez o seu trabalho. E sua caridade de desaparecer conseguiu tranqüilizar o meu espírito. Sem notícias suas, voltei a ocupar minha mente com o cotidiano. Perfeita a natureza humana, que sabe tão bem se adaptar.

Porém, como a paz é inerente à natureza e a guerra, uma construção humana, eu estava condenado a tremer minhas mãos novamente, a gaguejar, a sentir aquele frio na barriga, que é tão bom, mas que faz tão mal. Isso deve dar câncer. Caso seja verdade, muita gente de fato já morreu de amores. Você jamais deveria ter permitido que eu a visse novamente. Eu jamais deveria mirar aqueles olhos, que não fosse por fotos. Eu deveria estar terminantemente proibido de sentir aquele perfume; de ver a forma cruel com que aqueles cabelos negros caem pelos ombros e abaixo deles, até a altura dos seios, quando são soltos suavemente; de ver aquela pele morena, capaz de brilhar com um mínimo de luz, e fazer da mulher morena a maior responsável por toda a poesia já escrita nesse mundo, mesmo que declarada em contrário.

A minha condenação final veio no instante em que fui autorizado a beijar-lhe o rosto, toda a face, e finalmente a boca. A percorrer toda a textura dos seus lábios, o calor comedido da sua língua. A sentir seus cabelos tocarem meu rosto, e me arrepiarem por completo. Uma falta de ar e de equilíbrio naquele momento confundiram o meu registro de informações e tornam agora impossível descrever com tantos detalhes tal experiência singular.

Não há mais o que relatar. Eu não a vi mais. Talvez seja essa a sabedoria divina, encerrando paixões excedidas para que o mundo possa seguir a sua história. A paixão é o contrário de tudo aquilo que prospera na vida. É falsa a afirmação de que pessoas apaixonadas mudaram o mundo. Elas apenas derramaram sangue. Outras pessoas, mais racionais, vieram, limparam o sangue, recolheram os corpos e, aí sim, transformaram o mundo.

Caso você continue a permitir, eu vou me entregar cegamente, vivendo a intensidade dos meus sentidos, até não sentir mais. Só você tem o poder de evitar isso, pois eu estou em suas mãos, mais uma vez, depois de tanto tempo. Sou incapaz de resistir.

Posso voltar no tempo? Posso voltar ao final da viagem “Sideways” que fiz com meu primo, e argumentar com ele novamente? De que não vale a pena se importar com uma única pessoa, e deixar seu amor próprio mergulhar de cabeça em um abismo? De que é preferível viver uma vida artificial, ordinária, usando as conquistas eventuais para se convencer de que ninguém merece estar do lado esquerdo da sua cama, para sempre? De que todas as mulheres são iguais, e que não existe essa mulher capaz de fazer com que eu esteja trêmulo, suando frio e feliz, ao mesmo tempo, enquanto escrevo essas palavras tão pueris?

Agora é tarde demais.

4 Comments:

Blogger rêve said...

uau! sem mais palavras...

1:13 AM  
Blogger Cristiana said...

Estou sozinha como há muito tempo não estava, e estou gostando de viver "sideways"...tudo tem o lado bom e ruim, é só saber desfrutar. O que seria do doce sem o ácido e vice-versa? O que seria de "dois" sem antes o "um"? rs Beijos querido...

11:44 PM  
Anonymous Anônimo said...

...

4:31 PM  
Anonymous Anônimo said...

cara gostei muito...
vc é profundo e suave. bjus

8:03 PM  

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