Boa parte da forma como vemos o mundo está ligada à nossa nacionalidade e naturalidade, ao local onde nascemos e, principalmente, fomos criados. Não é obviamente uma regra geral, mas percebe-se isso na maior parte das pessoas, e pude perceber melhor quando mudei de cidade.
Nasci em uma cidade do interior, no sul do estado do Rio de Janeiro, chamada Volta Redonda. Uma cidade feia, com atmosfera poluída pelo minério de ferro e com uma sociedade estranha.
Diz a história que os jesuítas chegaram à região ainda no século XVIII, e fundaram várias fazendas. Uma delas, a Fazenda de Santa Cecília, ocupava a região onde mais tarde surgiria a cidade de Volta Redonda. Cidade que teria como ponto de partida o ano de 1941, e que daria abrigo a uma usina siderúrgica, construída através de um acordo entre Brasil e Estados Unidos. O exército brasileiro enviava alguns soldados para levar tiro na Europa, e os americanos ajudavam a construir uma Fábrica de Folha de Flandres e, juntamente, uma cidade padrão para abrigar seus operários.
Isso fez de Volta Redonda uma cidade única no Brasil. A cidade foi modelada como uma cidade do interior norte-americano. Projetistas e arquitetos gringos deram as instruções para engenheiros, arquitetos e desenhistas (como o meu avô) de forma a fazer uma grande vila, com todos os detalhes da divisão social existentes nos Estados Unidos da época.
Pessoas de várias partes do país, principalmente Minas Gerais, vieram para Volta Redonda, atraídas pelo emprego e pela propaganda nacionalista de Getúlio Vargas, de construir um Brasil potência. O que criou uma cidade em pleno Estado do Rio com um sotaque ímpar, meio mineiro, meio perdido, e com uma população vazia de raízes culturais, de descendência, de história. Uma população neutra, fabricada, planificada.
As características únicas de Volta Redonda começam na divisão social feita pelos bairros. Para os engenheiros, por exemplo, foi criado o bairro do Laranjal, no alto de um morro, com as maiores casas da cidade, tanto no tamanho do terreno quanto na sofisticação das residências. Ruas largas, idênticas aos subúrbios americanos, com grandes jardins na frente das casas, sendo estas bem espaçadas uma das outras. Grandes quintais para o típico churrasco de final de semana. Muitas árvores, que enchiam as ruas de folhas no outono. Nenhum barulho, apenas o da natureza e do alto-forno que, de tempos em tempos, soava o derramamento do minério de ferro derretido, som que era ouvido em toda a cidade.
Para os médicos, construíram um edifício de apartamentos grandes e confortáveis, atrás do Hospital da CSN. Para a classe média, formada por profissionais diversos, funcionários da Usina, por comerciantes, dentre outros, ficou designada a Vila Santa Cecília. Era o bairro das cercanias da Fazenda Santa Cecília, que existe até hoje. Era o bairro onde eu morei até os 18 anos, e onde ainda moram meus avós e meus pais. Ruas não tão largas como as do Laranjal, com casas também menores, mas num estilo também bastante norte-americano. As casas, a princípio, eram todas iguais, dependendo do bairro. As da Vila eram como aquelas casas que desenhávamos no colégio, um retângulo, um telhado fechando um triangulo em um dos lados, um jardim na frente, um quintal atrás, uma garagem. Três furos abaixo do triângulo, na altura do sótão ou forro. Todas as casas da Vila eram assim, e algumas ainda o são. A que eu morei, ainda guarda o mesmo telhado, os mesmos três furinhos, mas com algumas mudanças. Ficava na Rua 48 (sim, em Volta Redonda as ruas não têm nome, e sim números, com raras exceções), perpendicular à Rua 33, onde estavam localizados vários Hotéis-Pensões, que ainda estão por lá. Estes hotéis formam uma obra prima que sempre me fascinou. Um grande casarão, com uma lâmpada na porta da entrada, com uma garagem ao lado, e as janelas de madeira. Dois andares. Foram construídos para abrigar os recém chegados na cidade, empregados da Usina. Meu pai morou num deles. Os casarões dos hotéis também eram todos iguais, com alguns detalhes de conforto interno e da fachada que diferenciavam também a classe das pessoas que ali se hospedavam. Havia hotéis para engenheiros, para enfermeiras, para “peões”, etc.
As ruas que cruzavam a Rua 33 também guardavam em si uma divisão social. A Rua 33 dividia as demais ruas, como a minha Rua 48, em duas. Na parte de baixo, plana, moravam as pessoas mais simples. Na parte de cima, uma classe média mais alta. Minha família morava na parte de cima. Ao final da Rua 33, ficava (no caso, ainda fica, mas não resisto em usar o pretérito imperfeito quando falo do meu passado) uma praça e a Escola Técnica Pandiá Calógeras, construída para formar os operários da Usina.
E existiam outros bairros, para outras classes sociais, bairros para os peões que trabalhavam na Usina, para serventes, garçons, pessoas mais simples. Casas mais simples, geminadas, também padronizadas.
A construção de colégios na cidade, além da Escola Técnica, também não deixou de observar a divisão social. O Colégio Rosário era destinado aos filhos das classes mais altas. Coincidentemente, assim como o bairro do Laranjal, ficava num morro, numa posição superior. O Colégio onde eu estudei, o Macedo Soares, ficava dentro da Vila Santa Cecília, e era a escola dos filhos da classe média. Outros colégios foram construídos para classes menos abastadas.
O mesmo ocorria com os clubes sociais. Minha família freqüentava o Clube dos Funcionários da CSN, o clube das classes média e alta. Outros clubes, como o Umuarama, o Comercial, dentre outros, garantiam o lazer da, como se costumava dizer, peãozada.
E assim, eu, minha irmã e nossos amigos crescemos, em meio a um ambiente não tão comum nas cidades brasileiras. Um ambiente de preconceito nem sempre nas entrelinhas, muitas vezes explícito (me lembro de ver um negro sendo discriminado dentro do Clube dos Funcionários, com garotos dizendo a ele que seu lugar não era ali, e sim em outro clube...).
Sim, existe divisão social em todas as cidades. No Rio, por exemplo, existe Leblon, existe Ipanema, existe Flamengo, existe Tijuca, existe Méier, etc. Mas há uma diferença crucial. Esses bairros foram surgindo dentro de uma história de mais de 500 anos, com movimentos migratórios que acompanhavam a condição social das pessoas. Já Volta Redonda foi planejada dessa maneira. A divisão social foi prevista, e da noite para o dia, a cidade passou a existir dessa forma. Tanto que eu senti um impacto grande quando vim morar no Rio, uma cidade tão diferente daquele experimento artificial em que eu havia habitado por 18 anos. Eu e minha irmã carregávamos um certo “pé atrás”, contrastado pela leveza dos cariocas. Nós crescemos dentro de uma forma, e custamos a derreter e se espalhar na nova realidade. E ainda não estamos livres por completo de nossas idiossincrasias voltaredondenses, e acho que isso nunca vai ocorrer.
Mesmo assim, eu tenho uma relação com Volta Redonda que não consegue ser desfeita. Tenho orgulho de ter nascido e crescido naquela cidade tão ímpar, tão diferente das demais cidades brasileiras. Tenho um desejo de, junto com minha irmã, algum dia criar um museu da cidade, talvez em um daqueles velhos hotéis da Rua 33, o Museu Newton de Paula (nome do meu avó, que mesmo sem estudos, trabalhou desenhando e projetando grande parte das casas e prédios da cidade). Um espaço com fotos antigas e relíquias de parte da história do Século XX, que ocorreu às margens do rio que faz uma volta completa antes de seguir seu curso. Como se o homem ali tivesse chegado e mudado o curso da história e da vida de inúmeras pessoas que estavam por chegar.