terça-feira, agosto 29, 2006

Vide bula

IDENTIFICAÇÃO DO PRODUTO
Alprazolam

INFORMAÇÃO AO PACIENTE
Alprazolam é um medicamento com ação no sistema nervoso central para o tratamento de estados de ansiedade, que podem surgir decorrentes de tensões no ambiente de trabalho, de fobias em geral e de paixões desesperadas.

INDICAÇÕES
Alprazolam é indicado no tratamento de estados de ansiedade.

CONTRA-INDICAÇÕES
Alprazolam é contra-indicado em pacientes que decidiram encarar a realidade de frente e não esperam que a vida seja feita de ilusões.

ADVERTÊNCIAS E PRECAUÇÕES
Como todo benzodiazepínico, Alprazolam pode provocar dependência, portanto deve ser administrado com precaução e sob orientação médica.
Alprazolam não deve ser ingerido com álcool. Para sua segurança, utilize água para ingerir os comprimidos.
Pacientes que façam uso de Alprazolam devem estar cientes das seguintes advertências:

  • O medicamento pode levar o paciente a se sentir bem, mesmo em situações adversas à sua felicidade.
  • O medicamento pode levar o paciente a caminhar pelas ruas como se estivesse sendo levado pela brisa, achando o mundo um lugar perfeito para se viver.
  • A falta de apego a pessoas e coisas e o relaxamento nos movimentos, provocado pelo uso da substância, podem fazer do paciente um amante perfeito.
  • O uso freqüente da droga pode nivelar as pessoas que giram em torno do paciente, diminuindo paixões e inimizades.
  • Misturado ao álcool, o medicamento pode fazer com que o paciente não tema coisas das quais ele deveria de fato ter medo.

POSOLOGIA
Nos estados de ansiedade: 0,25 a 0,5 mg, três vezes ao dia.
Transtorno do pânico: 0,5 a 1,0 mg, três vezes ao dia.
Desilusão com a vida: 1,0 a 2,0 mg, três vezes ao dia.
Paixões irracionais: 2,0 a 3,0 mg, três vezes ao dia (com acompanhamento médico diário).
Corações partidos: 5,0 mg (com internação).

sexta-feira, agosto 25, 2006

Sala de emergência

Hoje fui parar na emergência do Copa D’Or. Já tem quase um mês que venho sentindo falta de ar, dificuldade em respirar. Achei que era o resultado natural da boemia: álcool, alguns charutos de vez em vez, poucas horas de sono, e junto a tudo isso, tentar conciliar quatro dias na semana de exercícios na academia.

Mas hoje passou dos limites. Estava fazendo um esforço tão tremendo para respirar no trabalho que as pessoas já estavam reparando. Uma das piores sensações é estar sufocado, tentar respirar e sentir um piano pesando em suas costas.

Liguei para o meu primo que é médico (o mesmo das viagens Sideways), e mandei:

- Não é por nada não, mas acho que estou morrendo.

E ele então me despachou imediatamente para o Hotel Copa D’Or, que também é conhecido como hospital.

Língua pra fora, olhada pra cima, estetoscópio aqui, ali, raio X do peito, da barriga, coleta de sangue, de urina, etc. Quase duas horas na emergência, tratado como um rei (afinal de contas, o lugar já foi um hotel), e finalmente veio o médico, chamou-me para uma salinha, e deu o diagnóstico:

- É frescura.

Bom, ele não disse isso, mas quis dizer. Nenhum exame acusou absolutamente nada. Não pensem que estou frustrado com isso, apenas surpreendido com o enorme senso de humor do meu organismo.

Meu primo me encontrou no hospital, e de lá saímos para um almoço. Então, diante do diagnóstico dado pelo médico do Copa Hilton, ele me perguntou:

- Você anda muito ansioso com alguma coisa? Porque ansiedade demais pode resultar exatamente nesses sintomas que você está apresentando.

Aí eu pensei, pensei, e disse:

- Hummmmm...

quarta-feira, agosto 23, 2006

A Sangue Quente


"Você levou meu sossego
Você roubou minha paz
Por você eu vivo a sofrer
Sem você vou sofrer muito mais

Já não é amor
Já não é paixão
O que eu sinto por você
É obssessão"

- Mirabeau


Uma longa e tortuosa jornada pode acabar na... boca do urso, lá no alto da cachoeira. Mas que jornada é essa, de anos e anos vivendo muito bem comigo mesmo, aliviado por encontrar pela manhã o lado esquerdo da minha cama vazio, não ter a quem dar satisfações, curtindo a boa e velha galinhagem? Por algum acaso eu pretendia chegar ao topo da cachoeira?

Tenho na ponta da língua o argumento que usei com meu primo, quando da nossa última viagem no estilo “sideways”: estou cansado dessa vida bandida! Na verdade foi um argumento em conjunto. Nós éramos meio que os personagens do Sideways, por mais decadente que isso seja. Viajar com o propósito de “pegação”, junto com um amigo, que fala a sua língua, que não tem frescuras, que bebe o tanto quanto você bebe, é... bom demais.

Mas cansa. E nós chegamos a essa conclusão. Tristes, mas chegamos. Brindamos a nossa última viagem ao mundo do “venha o que vier”.

Cansa porque estou com 31 anos, meu primo com 28, e isso deveria cansar em tais idades. E cansa ver todos os seus amigos se preocupando com uma única pessoa, e tendo também uma única pessoa a se preocupar com eles, enquanto você só se dedica a um só indivíduo: você próprio.

E o tempo passou. Eu conheci Madrid, conheci Praga, conheci Lisboa. Da última vez que tinha ido à Europa, em 1999, voltei me encontrando nos olhos de certas moças, que na verdade apenas me refletiam, nada mais. Agora, está acontecendo novamente. Estou me perdendo, entregando meu espírito para o comando alheio. E pensar que nada, absolutamente nada disso precisaria estar acontecendo.

Bastava você não ter cruzado o meu caminho, para que eu não fosse obrigado a ficar horas contemplando uma figura, sem fazer idéia do que ela escondia. Ou podia ao menos ter mantido o esconderijo, nunca ter me deixado conhecer o prazer doloroso de te amar.

Pior, você deixou, e permitiu ainda mais! Permitiu que eu escutasse a sua voz. Fazendo isso, sem saber, condenou meus ouvidos a acharem todo e qualquer som a minha volta um incômodo infernal. Todos os sons, com exceção de um, grave e suave ao mesmo tempo, perfeito.

Não satisfeita, talvez dando asas a um instinto cruel das mulheres que nascem perto do final do inverno, das mulheres de agosto, você me concedeu instantes ao seu lado, em silêncio. Deixou-me sentir a sua presença sem sequer lhe tocar. E que silêncio rico! Pois com ele eu pude cantar dentro da minha mente tudo aquilo que não se pode falar.

Talvez, a essa altura, eu ainda pudesse ser salvo. Mas isso não estava nos planos, nem nos seus, nem nos meus. Lá estava eu pronunciando palavras e ouvindo os seus verbos. Porque você fez isso comigo? Por que não fingiu ser burra, estúpida, antipática, ou apenas ordinária, como a maioria das pessoas? Por que se revelar encantadora, dona de um argumento que vive na fronteira do racional e do subjetivo, sem exageros, sem pedantismo, sem clichês, sem fórmulas? Sem a hipocrisia dos que dizem “eu não tenho preconceitos”. Sem a perfídia dos que dizem isso ou aquilo de acordo com a situação. Por quê?

A esse êxtase de admiração, experimentei um tempo longe dos teus sinais. Ah, maldita ansiedade! O seu ato de caridade, ao me poupar de mais detalhes seus, que já começavam a atrapalhar o meu bom senso, não funcionou de primeira. Como se trabalha numa situação dessas? Como se levanta todas as manhãs? Como se diz “bom dia” ao porteiro e aos colegas de trabalho? Como se pensa em alguma coisa diferente do seu nome? Como evitar remeter toda e qualquer pessoa, música, frase, som, propaganda, programa de TV, jingle político, qualquer coisa, a uma única idéia: você? Como sonhar com outra coisa (assumindo-se que seja possível dormir)?

Mas o tempo fez o seu trabalho. E sua caridade de desaparecer conseguiu tranqüilizar o meu espírito. Sem notícias suas, voltei a ocupar minha mente com o cotidiano. Perfeita a natureza humana, que sabe tão bem se adaptar.

Porém, como a paz é inerente à natureza e a guerra, uma construção humana, eu estava condenado a tremer minhas mãos novamente, a gaguejar, a sentir aquele frio na barriga, que é tão bom, mas que faz tão mal. Isso deve dar câncer. Caso seja verdade, muita gente de fato já morreu de amores. Você jamais deveria ter permitido que eu a visse novamente. Eu jamais deveria mirar aqueles olhos, que não fosse por fotos. Eu deveria estar terminantemente proibido de sentir aquele perfume; de ver a forma cruel com que aqueles cabelos negros caem pelos ombros e abaixo deles, até a altura dos seios, quando são soltos suavemente; de ver aquela pele morena, capaz de brilhar com um mínimo de luz, e fazer da mulher morena a maior responsável por toda a poesia já escrita nesse mundo, mesmo que declarada em contrário.

A minha condenação final veio no instante em que fui autorizado a beijar-lhe o rosto, toda a face, e finalmente a boca. A percorrer toda a textura dos seus lábios, o calor comedido da sua língua. A sentir seus cabelos tocarem meu rosto, e me arrepiarem por completo. Uma falta de ar e de equilíbrio naquele momento confundiram o meu registro de informações e tornam agora impossível descrever com tantos detalhes tal experiência singular.

Não há mais o que relatar. Eu não a vi mais. Talvez seja essa a sabedoria divina, encerrando paixões excedidas para que o mundo possa seguir a sua história. A paixão é o contrário de tudo aquilo que prospera na vida. É falsa a afirmação de que pessoas apaixonadas mudaram o mundo. Elas apenas derramaram sangue. Outras pessoas, mais racionais, vieram, limparam o sangue, recolheram os corpos e, aí sim, transformaram o mundo.

Caso você continue a permitir, eu vou me entregar cegamente, vivendo a intensidade dos meus sentidos, até não sentir mais. Só você tem o poder de evitar isso, pois eu estou em suas mãos, mais uma vez, depois de tanto tempo. Sou incapaz de resistir.

Posso voltar no tempo? Posso voltar ao final da viagem “Sideways” que fiz com meu primo, e argumentar com ele novamente? De que não vale a pena se importar com uma única pessoa, e deixar seu amor próprio mergulhar de cabeça em um abismo? De que é preferível viver uma vida artificial, ordinária, usando as conquistas eventuais para se convencer de que ninguém merece estar do lado esquerdo da sua cama, para sempre? De que todas as mulheres são iguais, e que não existe essa mulher capaz de fazer com que eu esteja trêmulo, suando frio e feliz, ao mesmo tempo, enquanto escrevo essas palavras tão pueris?

Agora é tarde demais.

domingo, agosto 20, 2006

Mrs. Amos, come save my soul


When you gonna make up your mind?

Cause things are gonna change so fast

...

sábado, agosto 19, 2006

Santa Cecília II


Algumas considerações extras, em relação à minha estranha cidade natal, cabem aqui. Volta Redonda, como já disse, foi construída no início dos anos 40, e, dessa forma, é praticamente um “sítio arqueológico” do período.

Tirando as casas residenciais, todos os demais prédios originais da cidade se dividem em duas categorias:

(i) Imensos galpões ou casarões, típicos da década de 40, parecidos com as construções encontradas na UFRJ ou na USP, que datam desta época. É impressionante como naqueles dias não se pensava em poupar material de construção. E mais, tudo precisava ter muito, muito espaço. Corredores gigantes, janelas projetadas para uma população de “pé-grandes”. Era como se as construções precisassem impressionar pelo tamanho. Impressionar não só seus ocupantes, mas aqueles que visitavam o lugar. E isso tem, de alguma forma, uma relação com a categoria seguinte.

(ii) Uma arquitetura um tanto fascista, típica da Era Vargas no Brasil. A Escola Técnica Pandiá Calógeras e o Tiro de Guerra são exemplos perfeitos dessa arquitetura. Outra instância, o Recreio do Trabalhador (nome mais ufanista é impossível), clube público onde existiam piscinas, trampolins, quadras poliesportivas e campo de futebol. A forma como tudo está distribuído, a posição das quadras, visto do alto, é muito “vamos construir um Brasil do futuro, um Brasil potência, superior”.

Existem fotos da época que mostram grupos de atletas ou de estudantes sendo exibidos como uma espécie de “super raça”. Outras exibem uma explícita obediência ao dever civil.

É claro que tudo isso fracassou junto com Vargas, mas o efeito pôde ser sentido por mais tempo. Tenho até hoje na memória as comemorações de 7 de Setembro, onde todos os alunos de todas as escolas eram vestidos com toda a pompa, uniformes engomados, impecáveis, e desfilavam pelas ruas segurando bandeiras (pelo menos não eram estandartes). Lembro-me das aulas de Educação Moral e Cívica, e de ter que cantar o Hino Nacional, quando do hasteamento da bandeira do Brasil no pátio da escola, uma vez por semana.

Ainda acho que no futuro mais coisas serão “descobertas” sobre a cidade e sobre o período, em relação a Getúlio Vargas, Volta Redonda e a 2a Guerra Mundial. “O passado é imprevisível”.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Santa Cecília


Boa parte da forma como vemos o mundo está ligada à nossa nacionalidade e naturalidade, ao local onde nascemos e, principalmente, fomos criados. Não é obviamente uma regra geral, mas percebe-se isso na maior parte das pessoas, e pude perceber melhor quando mudei de cidade.

Nasci em uma cidade do interior, no sul do estado do Rio de Janeiro, chamada Volta Redonda. Uma cidade feia, com atmosfera poluída pelo minério de ferro e com uma sociedade estranha.

Diz a história que os jesuítas chegaram à região ainda no século XVIII, e fundaram várias fazendas. Uma delas, a Fazenda de Santa Cecília, ocupava a região onde mais tarde surgiria a cidade de Volta Redonda. Cidade que teria como ponto de partida o ano de 1941, e que daria abrigo a uma usina siderúrgica, construída através de um acordo entre Brasil e Estados Unidos. O exército brasileiro enviava alguns soldados para levar tiro na Europa, e os americanos ajudavam a construir uma Fábrica de Folha de Flandres e, juntamente, uma cidade padrão para abrigar seus operários.

Isso fez de Volta Redonda uma cidade única no Brasil. A cidade foi modelada como uma cidade do interior norte-americano. Projetistas e arquitetos gringos deram as instruções para engenheiros, arquitetos e desenhistas (como o meu avô) de forma a fazer uma grande vila, com todos os detalhes da divisão social existentes nos Estados Unidos da época.

Pessoas de várias partes do país, principalmente Minas Gerais, vieram para Volta Redonda, atraídas pelo emprego e pela propaganda nacionalista de Getúlio Vargas, de construir um Brasil potência. O que criou uma cidade em pleno Estado do Rio com um sotaque ímpar, meio mineiro, meio perdido, e com uma população vazia de raízes culturais, de descendência, de história. Uma população neutra, fabricada, planificada.

As características únicas de Volta Redonda começam na divisão social feita pelos bairros. Para os engenheiros, por exemplo, foi criado o bairro do Laranjal, no alto de um morro, com as maiores casas da cidade, tanto no tamanho do terreno quanto na sofisticação das residências. Ruas largas, idênticas aos subúrbios americanos, com grandes jardins na frente das casas, sendo estas bem espaçadas uma das outras. Grandes quintais para o típico churrasco de final de semana. Muitas árvores, que enchiam as ruas de folhas no outono. Nenhum barulho, apenas o da natureza e do alto-forno que, de tempos em tempos, soava o derramamento do minério de ferro derretido, som que era ouvido em toda a cidade.

Para os médicos, construíram um edifício de apartamentos grandes e confortáveis, atrás do Hospital da CSN. Para a classe média, formada por profissionais diversos, funcionários da Usina, por comerciantes, dentre outros, ficou designada a Vila Santa Cecília. Era o bairro das cercanias da Fazenda Santa Cecília, que existe até hoje. Era o bairro onde eu morei até os 18 anos, e onde ainda moram meus avós e meus pais. Ruas não tão largas como as do Laranjal, com casas também menores, mas num estilo também bastante norte-americano. As casas, a princípio, eram todas iguais, dependendo do bairro. As da Vila eram como aquelas casas que desenhávamos no colégio, um retângulo, um telhado fechando um triangulo em um dos lados, um jardim na frente, um quintal atrás, uma garagem. Três furos abaixo do triângulo, na altura do sótão ou forro. Todas as casas da Vila eram assim, e algumas ainda o são. A que eu morei, ainda guarda o mesmo telhado, os mesmos três furinhos, mas com algumas mudanças. Ficava na Rua 48 (sim, em Volta Redonda as ruas não têm nome, e sim números, com raras exceções), perpendicular à Rua 33, onde estavam localizados vários Hotéis-Pensões, que ainda estão por lá. Estes hotéis formam uma obra prima que sempre me fascinou. Um grande casarão, com uma lâmpada na porta da entrada, com uma garagem ao lado, e as janelas de madeira. Dois andares. Foram construídos para abrigar os recém chegados na cidade, empregados da Usina. Meu pai morou num deles. Os casarões dos hotéis também eram todos iguais, com alguns detalhes de conforto interno e da fachada que diferenciavam também a classe das pessoas que ali se hospedavam. Havia hotéis para engenheiros, para enfermeiras, para “peões”, etc.

As ruas que cruzavam a Rua 33 também guardavam em si uma divisão social. A Rua 33 dividia as demais ruas, como a minha Rua 48, em duas. Na parte de baixo, plana, moravam as pessoas mais simples. Na parte de cima, uma classe média mais alta. Minha família morava na parte de cima. Ao final da Rua 33, ficava (no caso, ainda fica, mas não resisto em usar o pretérito imperfeito quando falo do meu passado) uma praça e a Escola Técnica Pandiá Calógeras, construída para formar os operários da Usina.

E existiam outros bairros, para outras classes sociais, bairros para os peões que trabalhavam na Usina, para serventes, garçons, pessoas mais simples. Casas mais simples, geminadas, também padronizadas.

A construção de colégios na cidade, além da Escola Técnica, também não deixou de observar a divisão social. O Colégio Rosário era destinado aos filhos das classes mais altas. Coincidentemente, assim como o bairro do Laranjal, ficava num morro, numa posição superior. O Colégio onde eu estudei, o Macedo Soares, ficava dentro da Vila Santa Cecília, e era a escola dos filhos da classe média. Outros colégios foram construídos para classes menos abastadas.

O mesmo ocorria com os clubes sociais. Minha família freqüentava o Clube dos Funcionários da CSN, o clube das classes média e alta. Outros clubes, como o Umuarama, o Comercial, dentre outros, garantiam o lazer da, como se costumava dizer, peãozada.

E assim, eu, minha irmã e nossos amigos crescemos, em meio a um ambiente não tão comum nas cidades brasileiras. Um ambiente de preconceito nem sempre nas entrelinhas, muitas vezes explícito (me lembro de ver um negro sendo discriminado dentro do Clube dos Funcionários, com garotos dizendo a ele que seu lugar não era ali, e sim em outro clube...).

Sim, existe divisão social em todas as cidades. No Rio, por exemplo, existe Leblon, existe Ipanema, existe Flamengo, existe Tijuca, existe Méier, etc. Mas há uma diferença crucial. Esses bairros foram surgindo dentro de uma história de mais de 500 anos, com movimentos migratórios que acompanhavam a condição social das pessoas. Já Volta Redonda foi planejada dessa maneira. A divisão social foi prevista, e da noite para o dia, a cidade passou a existir dessa forma. Tanto que eu senti um impacto grande quando vim morar no Rio, uma cidade tão diferente daquele experimento artificial em que eu havia habitado por 18 anos. Eu e minha irmã carregávamos um certo “pé atrás”, contrastado pela leveza dos cariocas. Nós crescemos dentro de uma forma, e custamos a derreter e se espalhar na nova realidade. E ainda não estamos livres por completo de nossas idiossincrasias voltaredondenses, e acho que isso nunca vai ocorrer.

Mesmo assim, eu tenho uma relação com Volta Redonda que não consegue ser desfeita. Tenho orgulho de ter nascido e crescido naquela cidade tão ímpar, tão diferente das demais cidades brasileiras. Tenho um desejo de, junto com minha irmã, algum dia criar um museu da cidade, talvez em um daqueles velhos hotéis da Rua 33, o Museu Newton de Paula (nome do meu avó, que mesmo sem estudos, trabalhou desenhando e projetando grande parte das casas e prédios da cidade). Um espaço com fotos antigas e relíquias de parte da história do Século XX, que ocorreu às margens do rio que faz uma volta completa antes de seguir seu curso. Como se o homem ali tivesse chegado e mudado o curso da história e da vida de inúmeras pessoas que estavam por chegar.

domingo, agosto 06, 2006

A Mente Selvagem

* Fantasia sobre a composição do adagietto da 5a sinfonia de Mahler. Data: algum dia de 2000.


00:20 e a inquietação não ia embora. Só a criatividade havia se retirado. As notas musicais não fluíam mais de sua mente, e o compositor sentia uma enorme vontade de ter alguma vontade. Foi ao toilet e tentou vomitar; dedo na garganta. E nada. O mais difícil, botar algo pra fora.

Foi então que ele resolveu se deitar, fechou os olhos e se concentrou no silêncio da casa. E como sempre, ela veio à sua cabeça. Algo subitamente mudou, o ar mudou, seu corpo estremeceu, a pele arrepiou-se. Uma suave melodia, um triste adágio, soprou em seus ouvidos. Uma lágrima rolou até seus lábios, e o gosto salgado lhe deu energia; ele podia sentir as veias de sua cabeça pulsarem, como prestes a arrebentar de delírio. A música passou completa por sua mente, e ele jamais esqueceria um só acorde. Então se levantou, foi para a escrivaninha e começou as seguintes frases:

“Amor de toda a minha vida. Poderia perder toda essa noite, todo um mês, quem sabe um ano, perderia a vida, a descrever o quão és bela. Poderia perder todo esse tempo só em descrever teus lábios, pois eles não deixaram os meus até hoje. O teu cheiro não sai da minha pele, da minha alma. O teu rosto é belo demais pra ser ignorado pelos meus pobres olhos, mesmo na escuridão. A tua voz é séria, é doce e vibra com o meu coração, de forma que é o único fantasma que tenho escutado ultimamente. A tua pele brinca com os meus arrepios. Eu te acariciaria por toda uma eternidade, e jamais esgotaria a minha satisfação com isso. O teu corpo desafia o meu desejo, me faz tremer e me intimida. É a minha única fonte e inspiração de prazer, inesgotável. Seus cabelos se gabam de me ver sofrer, de não poder tocá-los quando eles me acordam de noite, no meio de um sonho. Você é a coisa mais importante da minha vida, no meu mundo só existe você. Mas o meu mundo não existe, é um sonho que sempre acaba em soluços e falta de ar... Você não precisa de mim. Há alguém mais importante pra você... E isso já me fez e me faz chorar copiosamente, como uma criança. É como medo, um frio na barriga.”

O compositor, soluçando, corre novamente ao toilet e engole alguns tranqüilizantes. Senta no chão e enxuga as lágrimas. Mas as drogas não mais funcionam. A sua mente selvagem não pode mais ser domesticada. Ele decide acabar o que começou, e volta ao seu quarto para continuar a escrever:

“Mesmo que eu não faça parte da sua vida, eu te amo do fundo do meu coração. Você é talentosa... é inteligente, me encanta e me faz te ouvir, incansavelmente. Você é segura de si... você atrai a atenção de todos. Como você é talentosa!... Não existe papel no mundo para registrar todos os elogios que eu poderia te fazer. O meu sofrimento é justo, pois é por você. Eu acompanharia o desenrolar de suas idéias indefinidamente, pois tu és espirituosa. Você é o que de mais importa para mim, e é o que mais vale a pena nessa existência.”

Terminada a sua carta, que jamais seria entregue a alguém, o compositor estava mais tranqüilo. A atividade de elogiar sua amada o deixava de bem com as pessoas, com o mundo, com o universo, com Deus. Agora ele podia dormir, e no dia seguinte iria escrever uma das mais belas peças musicais do nosso mundo.

sábado, agosto 05, 2006

Capítulo I

"O passado é imprevisível..."
- Bruno Latour

Mais uma vez, o jovem Hugo acordava suando, mas sem nervosismo. Ele nunca acordava destes pesadelos nervoso, mas sempre agoniado, suando talvez de medo. Sempre que tinha o pesadelo do desastre aéreo, acordava com a certeza de que sua morte estava próxima.

Por isso ele não poderia jamais voltar a dormir sozinho. Precisava mais do que nunca acordar nos braços de alguém. E ela sempre estava lá. Verônica estava dormindo, com o braço esquerdo sobre o ombro de Hugo, respirando lentamente em sua nuca. E ele assim ia ficando aos poucos com menos medo, a vontade de chorar passava. Ele não estava sozinho.

Acordar após um pesadelo era o que Hugo mais temia. Principalmente quando se tratavam dos pesadelos de desastres aéreos. A mesma coisa. A morte, a queda, a sensação de falta de base, de suporte. Como cenas repetidas de um filme: acordar após o suplício, ver o quarto com pouca luz, pois a janela ainda estava fechada. Ver os móveis antigos, a cor cinza do quarto de dormir. Os sons que começavam a surgir do exterior, sons de domingo. Era domingo; ao menos Hugo achava que era, tinha cara de domingo. Ele já não mais sabia em que dia estava. Apenas sabia que sua morte estava chegando, e nada iria tirar isso da sua cabeça. Além disso, ele não sabia mais nada ao certo.

E sempre que tinha esses pesadelos, acordava cedo. O relógio em cima da cômoda marcava 7:47. Mas Verônica continuava dormindo. E isso o deixava abandonado, mesmo com a presença dela. Ele precisava fazê-la acordar para expulsar mais o medo, para ter coragem de sair da cama. Hugo não era nada numa manhã de domingo, ainda mais após o pesadelo. Ainda mais sem Verônica. Ele precisava se certificar que ela estava viva, que estaria viva antes de ele morrer. Quis acordar Verônica. Começou movimentando a cabeça, depois os pés e os braços. Virou-se para cima, e puxou a mão da companheira para seu peito. Manteve os olhos abertos, fixando o teto do quarto. O ventilador estava ligado, mas agora ele incomodava, ventava frio. Com o braço direito, desligou o interruptor perto da cômoda. O som do ambiente mudava. Mais uma vez ele se virava, de costas para Verônica, e ficou aguardando. Ela, então, começava a acordar, a se mexer na cama, a acariciá-lo. Hugo se enchia de esperanças, o medo cada vez menos presente. Verônica se espreguiçava, e ia se chegando mais perto a Hugo, abraçando-o carinhosamente, com uma ternura que lhe protegia contra tudo. Uma ternura maternal. Beijava suas orelhas, seu rosto, apertava com as mãos o seu peito. Ele sentia os seus cabelos pretos caírem em seu ombro e pescoço. Verônica lhe saudava, com a quantidade de esperança que bastaria para toda a vida de Hugo:

- Bom dia, meu querido. Como foi que você dormiu?

Mas é impossível descrever como Verônica dizia estas palavras. Com uma voz quase celestial, que Hugo precisava vencer mil barreiras para dizer a verdade. Uma voz que confortaria qualquer um no leito de morte. Que daria algumas esperanças ao maior dos miseráveis. Hugo timidamente respondia:

- Não foi das melhores. Bom dia, meu amor. Você sabe. Sonhei de novo com um desastre aéreo. Acordei mal. Que bom que você está aqui.

- O mesmo sonho? Mas não fica assim. Estou aqui, e você está vivo, comigo.

- Estou. Acordei com uma agonia terrível, você nem imagina. Mas a sua presença me salva sempre, me salva do pesadelo, do desastre.

Hugo segurava a mão de Verônica, a que apertava o seu peito. Ele agora se sentia de fato mais protegido, mas algo ainda o agoniava.

- Eu sinto hoje, querida, que estou para morrer. Você já sentiu isso? Queria muito tirar isso que está aqui dentro, livrar meu espírito desse sentimento, mas ele é tão certo para mim quanto a sua presença. É como se hoje fosse o primeiro dia da minha morte. Eu sinto mudanças no meu organismo, algo mudou drasticamente. Não se trata mais de simples agonia após um pesadelo.

Verônica não sabia o que dizer, mas fechou os olhos. Talvez a franqueza de Hugo a tenha contaminado com a agonia. E ela nem poderia imaginar de onde viria tal idéia fixa de morte. Mas ao contrário dele, deu um suspiro de resignação, e com os lábios colados suavemente no ouvido do amante, sussurrou:

- Você não vai morrer... Eu estou aqui. E deve estar um dia lindo lá fora... Tenha esperança.