segunda-feira, setembro 04, 2006

Veni, creator Spiritus!

Perdi Mahler no Municipal. E perdi a maior de todas as sinfonias, a sua oitava.

A primeira vez que escutei a Sinfonia dos Mil, não acreditei que aquilo fosse possível de ser feito por uma pessoa de carne e osso. OK, a nona de Beethoven introduziu o coro sinfônico. Mas o coro da oitava de Mahler É a sinfonia. São apenas dois movimentos, capazes de arrepiar ao extremo qualquer pessoa que tenha um mínimo de sensibilidade. O "Veni, creator Spiritus!", que abre o primeiro movimento, cura até pacientes de catatonia.

Sou suspeito para falar de Gustav Mahler. Para mim, ele é o maior nome de toda a história da música mundial. Podem falar de todas as revoluções no mundo da música, mas nada se compara a Mahler. Toda a arte musical do século XX existe graças às portas abertas pelo compositor judeu. Digo toda mesmo, desde os clássicos contemporâneos e jazz ao rock e eletrônicos. Mahler desconstruiu a sinfonia clássica e a transformou numa “sopa primordial” de tudo o que poderia ser feito depois. Burt Bacharach e Tom Jobim não teriam podido quebrar seus andamentos se não fosse o turbilhão sinfônico deixado por Mahler ao mundo, em dez partes.

E nisso estava a grandeza inegável do sujeito: um compositor sinfônico, que gostava de trabalhar no mais difícil e complexo do mundo da música. Costumamos reclamar de ter que escrever uma tese de mestrado, um livro, etc. Ora bolas, imaginem o que é escrever uma sinfonia, como a oitava ou a nova, por exemplo? Uma única pessoa fazendo aquilo, e resultando num trabalho quase alienígena.

Gosto sempre de lembrar a primeira vez que ouvi a sinfonia número 10, na casa de um amigo (esse sim especialista em tudo sobre Mahler). Eu, ele, sua mulher, uma garrafa de White Horse e cigarros. Passamos horas falando besteira, coisas adolescentes, piadas retardadas, até que em dado instante:

- Agora vamos ouvir a décima. A inacabada. A que não é aceita por todos os entendidos do assunto!

Sim, porque Mahler escreveu a sua décima sinfonia, mas não concluiu o arranjo da obra. Isso só foi feito por Deryck Cooke, em 1960. Mesmo assim, a décima é um legítimo trabalho de Mahler, é genial, e é extremamente triste por sair da cabeça de um moribundo.

Ao escutar a décima sinfonia, como fiz na casa desse amigo há anos atrás, percebe-se que Mahler compreendeu a vida em sua plenitude. Ele entendeu tudo, e musicou. E depois morreu. Por palavras, seria obviamente impossível passar a nós, criaturas ordinárias, tudo aquilo que ele enxergou. Portanto, fez isso através da linguagem universal, a música. Nossa fraca percepção e sensibilidade ainda tornam impossível um completo entendimento das mensagens dessa obra. Mas ao menos ficamos com pequenos sopros de divindade em nossos ouvidos, o que já é mais do que suficiente neste mundo desgraçado.

Mas... voltando à oitava sinfonia. Quem foi ao Municipal, disse que ficou um pouco a desejar. O teatro é antigo, sua acústica está defasada em comparação a outras salas de concerto do resto do mundo. O coro do primeiro movimento virou uma maçaroca vibrante dentro da casa, o que deve ter sido um pouco frustrante. Mas, ainda assim, mais frustrante é não ter ido a este espetáculo.

Teve a alternativa de assistir ao mesmo programa no projeto Aquários, na praia de Copacabana. Bom, eu me apaixono constantemente pelas mulheres erradas, mas assistir a um concerto de música clássica mais de uma vez na praia de Copacabana, não, isso não! A primeira e última vez que tive esta péssima idéia foi há muito tempo atrás, quando executaram a segunda sinfonia, também de Mahler, na praia de Copa. Lembro-me dos vendedores de mate berrando, de mendigos brigando, pessoas loucas falando sozinhas, do helicóptero da Globo voando baixo e fazendo uma zoeira infernal, tudo isso enquanto os músicos tiravam sons angelicais dos seus violinos, oboés, gargantas, etc.

Acho que aqui pelas bandas da Guanabara, a minha casa ainda é a melhor sala de concerto.